Jussara Lucena, escritora

Textos

Cartão Postal

Passava um pouco das sete da manhã. Eu acabara de deixar meu filho na escola e parei para apreciar a paisagem. No ponto em que eu estava posicionado, um dos mais altos da cidade, os primeiros raios de sol começavam a aquecer a manhã de outono. Perto dali, uma névoa cobria quase todo o entorno, contrastando com um céu totalmente azul. No alto, escapando da neblina estava a Cuia. O movimento das nuvens, iluminadas pelo sol, davam um toque de magia à cena. Em certos momentos ela também era encoberta pela neblina. Pensei: vale a pena um pouco de atraso no trabalho, pois isto não se repete todos os dias. Senti por não portar a minha máquina fotográfica.
Desci do carro para poder observar melhor e sentir um pouco do calor do Sol em minha pele. Percebi que um senhor também contemplava a cena. O corpo curvado, os poucos cabelos, já brancos e a flacidez da pele sinalizavam os seus quase oitenta anos vividos.
Ele percebeu a minha presença e se aproximou.
- Bom dia! – disse ele.
- Bom dia! Bela vista não?
- Realmente, fiz minha caminhada só pra ver isto. A repito sempre que posso, desde 1969.
- Desde 1969?
- Sim, desde que despreguei a última tábua do andaime usado na construção daquele monumento – disse apontando para a Cuia.
Depois, começou a contar um pouco da história da construção daquele que era o cartão postal da cidade.
***
Chequei aqui em 1966. Viemos para a construção de várias obras para abrigar a indústria do xisto. Era época do Regime Militar e obras grandiosas estavam acontecendo em todo o País. Vim em companhia do meu irmão mais velho, com quem aprendi o ofício de carpinteiro. A obra concentrava a energia de muitas pessoas que trabalharam aqui até 1969. Outros, como eu, ficaram. Naquela época, o Medici foi indicado como Presidente do Brasil, Pelé marcou o seu milésimo gol, Neil Armstrong pisou na lua. O nosso dinheiro era o Cruzeiro Novo, até hoje tenho algumas das notas que já eram antigas e foram carimbadas. Parece que foi ontem!
Havia muita madeira por aqui e os andaimes foram feitos de araucária, o pinheiro do Paraná. Foram milhares e milhares de pranchas, quilos e quilos de pregos que uma vez juntados formaram, para quem olhasse à distância, um verdadeiro paliteiro, estruturado cuidadosamente para servir como andaime e sustentação da escultura de mais de vinte metros de altura.
Desde então, passei bons momentos aqui, tenho muito boas recordações da época da obra. Casei-me, tive o meu primeiro filho. Porém nem tudo foi alegria. Na construção civil perdem-se muitas vidas. Naquela época as mortes eram ainda mais frequentes e, uma das vítimas foi o meu irmão. Morreu fazendo aquilo que mais gostava. Como ele dizia: “usando a madeira para fazer arte e com a arte modificar o mundo”.
Eu teria motivos para olhar a cuia e sentir raiva ou tristeza, porém o que eu vejo é beleza e também um pouco do meu irmão, um pouco de mim e de todos aqueles que ajudaram a construir o monumento. Triste para mim é ir ao cemitério, mas admirar a imponente caixa d’água, como faço agora, é como visitar o meu passado, reviver bons momentos, reencontrar os velhos amigos, revisitar os meus amores.
***
Ele olhou para mim. Pude perceber uma lágrima escapar de seu olho esquerdo. Aproximou-se mais um pouco e com as mãos trêmulas retirou do bolso da camisa um pedaço de papel dobrado, amassado e amarelado pelo tempo. Pediu que eu lesse quando tivesse tempo. Apanhei o papel, curioso para saber do que se tratava.
Ouvi o som de uma buzina. Eu não havia percebido, mas a neblina tinha envolvido também o local onde estávamos e um motorista assustado com o meu carro, estacionado em um lugar não tão seguro, buzinara.
Voltei para o senhor que me fazia companhia, porém ele havia iniciado sua caminhada de volta e desapareceu em meio a neblina. Mal pude perceber o contorno de seu corpo cansado e o arrastar de seus pés já a distância. Eu não havia me apresentado e nem perguntei seu nome. Nunca mais o vi.
Estacionei o carro em outro local e voltei-me ao pedaço de papel. Possuía um texto manuscrito. Era uma poesia que dizia:

Foi há muito tempo
Num Brasil Tupi e Tapuia
Onde o fruto do porongo
Pela mão do índio virou cuia.

Mesmo antes dos invasores portugueses
A cuia dos Quíchuas, a matty
Deu nome a planta de folhas verdes
A nossa saborosa erva-mate.

Sem anunciar ou receber convite
Veio o homem branco e da infusão bebeu
No calor, no frio, na espera, na noite
A velha companheira jamais esqueceu.

No último século um povo distante
Na terra do mate se estabeleceu
Do verde da terra fez sua riqueza
Fazendo do chá tradição polonesa.

Para lembrar o passado, pensar o futuro,
Um monumento essa gente ergueu
Na terra da araucária, canela e imbuia,
Brilha na noite, no alto, a Cuia.

A mente de um velho carpinteiro
Que nesta terra se arraigou
Recorda os feitos de seu companheiro
Que para a Cuia a vida entregou.

Passei a enxergar a cuia, no alto do morro, de maneira diferente. Ela também lembra um coração, representa algumas das formas de expressar o amor dessa gente pela sua terra, pelos seus costumes.

Texto selecionado para a Antologia Digital Motus Movimento Literário, da UNIPAMPA.

Adnelson Campos
24/10/2018

 

 

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